Negros, Canais, Lagoas e outras Imagens Periféricas
Por Edson José de Gouveia Bezerra
Para Cláudio Canuto, Edvaldo Damião, Marcial Lima (em memória) e, Jairo Jós
O projeto que por ora estamos apresentamos, foi inspirado na escrito do Manifesto Sururu, e, sendo ele o manifesto, uma narrativa que se enquadra nos movimentos de uma estética romântica, no entendimento de ser o ela, um estilo que constrói a articulação de seus movimentos, textos e imagens, mediante a incorporação de elementos retirados das culturas populares, de suas vivências e de suas alegorias.
Na verdade, a escrita do manifesto é uma escrita-testemunho sobre os escombros da modernidade alagoana, no entendimento de ser ela, modernidade, um movimento de seleção que se alarga, se consolida e se aprofunda a partir de uma sistemática destruição das tradições.
Neste sentido, ao escrevermos o manifesto diante do sumidouro das tradições alagoanas, as nossas afinidades eletivas se definiram a partir das escrituras culturas populares e nelas, as escritas dos negros e das geografias apartadas das imagens centrais, as quais, têm sido consolidadas em dominância, a partir de práticas articuladas em torno de um imaginário de Sol e Mar. Daí é que nele, manifesto, além das geografias periféricas, as figuras de Tia Marcelina e de Zumbi se sobressaem enquanto articuladores centrais das narrativas das tradições afro-alagoanas, e, ao redor delas, um desfilar de personagens postos às margens, e também, a violência da quebra dos terreiros alagoanos em 1912.
Com esta compreensão, diante do sumidouro da modernidade, toda a narrativa do manifesto é uma estética de desentranhamento articulada a partir das escritas dos negros alagoanos, entendendo-se aqui por escrita, as cores, os batuques, as danças, no entendimento de serem elas, cores, batuques e danças, alegorias, escritas agônicas da sobrevivência das culturas populares diante da destruição do moderno.
Neste sentido é que no presente projeto em sua articulação de imagens, o que nele se buscou por detrás das presenças, foi as possibilidades de provocarmos um desentranhamento das coisas alagoanas. Daí, então, a forte presença das geografias lacustres e de personagens soterrados no alinhamento comum de serem todas elas, geografias e personagens, contranarrativas diante da esperança de reatarmos por dentre os rastros da destruição, o inconsútil fio da memória. E vai ser justamente na articulação do registro das margens que podemos situar a indagação benjaminiana quando ele nos pergunta:
(...) não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera.
No que se colocam as possibilidades de um encontro, trata-se da construção de um evento em compasso de uma espera somente possível de se consolidar no tempo presente. Todavia, o presente, no entendimento de ser ele uma construção do humano, ele comporta em si mesmo, descontinuidades e vazios em busca de completudes. E então, podemos indagar: de qual tempo e de que presente aqui se fala?
Agostinho, o Santo, ao discorrer sobre o presente, vai articular a idéia da existência, não de um, mas, de três tipos de presente. Ela vai nos dizer que existe o presente das coisas passadas, o presente das coisas presentes, e - lugar de uma possível utopia – o presente das coisas futuras. E eu cá me pergunto: com qual presente a exposição de Negros, Canais, Lagoas e outras Imagens Periféricas se identifica?
Se fosse eu a escolher, do presente das coisas passadas, muitas das coisas de nossa Alagoas eu as deixaria no digno museu das memórias. Assim, aos Marechais alagoanos, eu os deixaria lá nas estátuas das praças e envoltos em suas lembranças das guerras pacificadoras ao longo dos embates históricos. Afinal, no agora das Alagoas, mas do que nunca, é preciso não se identificar com a história do vencedor, pois, a ser verdade o pressuposto benjaminiano de que nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie, é justamente disto que se trata. No movimento das escolhas, eu também deixaria enjauladas nos cárceres da memória, as intrigas políticas e as lembranças das guerras fratricidas dos grupos políticos. Do presente das coisas passadas das coisas alagoanas, entre as belezas em demasia, Negros, Canais, Lagoas e outras Imagens Periféricas se identifica então com a saga e a trajetória de Zumbi e a República solidária de Palmares e com toda a trajetória das comunidades afro-alagoanas, as quais vêm atravessando os séculos mantendo viva no coração e nas entranhas de seus corpos, as seculares heranças das culturas populares alagoanas e é justamente neste sentido que, na busca de manter acessa as possibilidades de todas as emergências, é que a presente exposição se alinha com as imagens e as trajetórias dos autores que nela se expõem, diante das possibilidades de sermos todos nós tocados por um sopro de um ar já antes respirado e escutar através delas, imagens, vozes que já escutamos e também, de ecos de vozes que já emudeceram.
É neste sentido que a presente exposição se coloca em contrapelo à atual consolidação de uma identidade central construída a partir da dominância das imagens de Sol e Mar, uma vez que, no que se entende ser esta uma identidade que vem sendo construída a partir de relações de força e da exclusão de um somatório de imagens e de trajetórias - das geografias fluviais e lacustres e das culturas populares - as quais, têm sido relegadas em virtude da reduplicação da dominância daquelas imagens. Com este entendimento, Negros, Canais, Lagoas e outras Imagens Periféricas parte do pressuposto de ser Alagoas, além de Sol e Mar, todo um somatório teimoso de imagens, práticas e de trajetórias que se entranham e se proliferam através de seus tipos populares, de seus índios, de suas culturas populares e que, além do humano, Alagoas também se espalha e se derrama através de suas dezenas de lagoas, da primitividade ancestral de seus mangues e canais, e também ainda, na sinuosidade de seus rios e nos planetários de seus mirantes.
Foi neste sentido que, amante que sou das imagens, quis compartilhar das Alagoas, as imagens e as trajetórias de suas entranhas e, neste encaminhar do desejo, a certeza de ser este, um desejo não apenas meu, mas de outros. Daí então, a iniciativa de compartilhar o imaginário da presente exposição com os fotógrafos que dela participam.
A bem da verdade, se a idéia da presente exposição – vale o registro, se inspirou na trajetória de Celso Brandão e de Lula Castelo Branco , ela também é devedora das escritas das imagens de Siloé Amorim, de Christiano Barros e de Luiz Cunha, na medida em que todos eles, cada um a seu modo, também têm se desdobrado na construção de um olhar desfocado das imagens centrais.
No sentido ainda de compartilhar uma trajetória, vale pontuar enquanto presenças fora do texto, as trajetórias de velhos e novos companheiros de viagem. É neste sentido que vale acentuar aqui nas entrelinhas, tanto os de algum tempo - caso de Ernani Viana, Jurandir Bozo, Cristiano Barros, Osvaldo Maciel, Chico Elpídio, Zé do Boi, Adelmo Afonso, Pedor da Rocha, aos meus mestres Dirceu Lindoso e Remo Mutzenberg, Marcos Sampaio, Werner Salles, Fernando Gomes, Nonato Lopes, Moisés Calu, Sávio de Almeida, Wilson Santos, Ronaldo de Andrade, Marcus Antônio, Bruno César, Rachel Rocha, Clébio Araújo, Geraldo de Majella. e de Zé Marcio – como também, os de há pouco, como tem sido o caso de Bruno Gustavo, Liara Nogueira, Sérgio Gusmão, Levy Paz e Alexandra Vieira, Kátia Lanúzia, Arnold Borges, Mestre Claúdio, Rogério Dias, Antônio Marcos Pontes de Moura e também, a todos os religiosos dos cultos religiosos de matriz africana, os quais, ao longo de minha trajetória têm sido para mim, motivo de inspiração e de júbilo. A todos enfim, a presente exposição se oferta no compartilhar de um sonho: o de poder sentir a presença de uma Alagoas transfigurada e ampliada a partir do poder de suas belezas e da pulsação de suas imagens e culturas periféricas.