As culturas populares sob os olhos de Zumba
O que caracteriza a
autenticidade de uma coisa é tudo aquilo que ela contém e é originalmente
transmissível, desde sua duração material até seu poder de testemunho
histórico.
Diante
das derrapagens do moderno em seu processo de destruições das tradições, podemos
quase que com uma cartesiana certeza afirmar que, diante das telas de Mestre Zumba,
estarmos diante de uma espécie de logradouro das tradições, lugar de onde se
pode vislumbrá-las como que um relampejar de tesouros diante de um perigo. É que, no somatório das suas telas e dos
traços de reminiscências que elas evocam,
e, ainda, no sentido das contingências – uma vez que no moderno o perigo do
sumidouro ronda as tradições -, o que
nelas vai estar presente, são autenticas
imagens das tradições, no entendimento aqui de que, autêntico aqui, deverá
ser enquadrado em seu sentido de aura, e, assim, oposto aos movimentos seriais dos simulacros,
pois nas palavras de Benjamin:
O que caracteriza a autenticidade de uma coisa é tudo aquilo
que ela contém e é originalmente transmissível, desde sua duração material até
seu poder de testemunho histórico.
Sendo
então disto que se trata – do testemunho histórico – Benjamin vai aprofundar o
sentido fulcral de seus movimentos identificando que:
É aos objetos históricos que aplicaríamos mais amplamente essa
noção de aura, porém, para melhor elucidação, seria necessário considerar a
aura de um objeto natural. Poder-se-ia defini-la como a única aparição de uma
realidade longínqua, por mais próxima que esteja. Num fim de tarde de verão,
caso se siga com os olhos uma linha de montanhas ao longo do horizonte ou a de
um galho, cuja sombra pousa sobre o nosso estado contemplativo, sente-se a aura
dessas montanhas, desse galho.
Bem
entendido, vai ser justamente a partir da compreensão de sua capacidade em produzir
imagens que nos remetem às realidades longínquas de reminiscências infantis e os movimentos lúdicos das culturas
populares, que as suas telas nos evocam para a concretude de uma historicidade
que se constrói a contrapelo aos movimentos do moderno no coração do próprio
moderno: as encenações rituais das culturas populares.
Diante
dos universos temáticos de Zumba – vultos
históricos, imagens marinhas e lacustres, tipos populares, etc. – sem
dúvida, são as imagens das culturas populares alagoanas as que nos remetem para
a existência dos movimentos mais persistentes
no que se entende do arcaico das
tradições, as culturas populares, e, sendo elas , as culturas populares – as
vezes identificadas enquanto “folclore” - movimentos que se atualizam mediante as
presenças rituais das memórias coletivas, que se ofertaram a ele, Zumba
enquanto um portal para as entranhas e os mistérios das Alagoas, uma vez nelas,
- e as imagens de Zumba testemunham -, ao contrário do frio distanciamento das
relações impessoais, nos remetem para momentos efervescência mediante os quais,
através delas e por meio delas, podemos quase que sentir sensações primárias –
as alegrias, as festas e seus desperdícios, as brincadeiras – mediante as quais
nós todos nos humanizamos.
Todavia,
se deixarmos em segundo plano os detalhes de suas escritas e procurarmos
através de suas imagens uma compreensão ampliada situando-as em uma determinada
época – a da exclusão das representações culturais dos negros, – de imediato
podemos perceber que, intencional ou alheiamente a sua vontade, todos (ou,
quase todos) os seus personagens são negros,
a partir de um detalhe: quase todos, são negros, negros sem rostos e de fisionomias apenas composta de silhuetas negras.
Há
muito o que se pensar a partir deste detalhe, uma vez que, em lugar de se
imaginar este traço enquanto um anulamento de diferenças, ao contrário,
poder-se-á pensar nele, ou através dele,
de uma estratégia a qual, ao recobrir os rostos sob o efeito de silhuetas
negras, o que esteve sendo insinuado ali,
era a projeção de uma africanidade
desde sempre presente em seu imaginário, pois, se imaginarmos Zumba enquanto um
traficante de sonhos, em todas as
suas telas das culturas populares, tudo o que nelas se vê, são alegorias
de movimentos que desde sempre se deslocaram (e se deslocam) no sumidouro
no tempo através de cartografias, as quais, sumindo ali, reaparecendo acolá, manifestam-se
mais adiante. Bem entendido, não se trata aqui de um articulado às estratégias
lingüísticas dos jogos de linguagem, mas de um movimento estratégico delas
mesmo, culturas populares e, na verificação dos fatos, basta pensarmos nas atuais
emergências dos bumbas-meu-boi urbanos,
quando, um simples registros de um olhar
atento às culturas populares, facilmente poderá constatar terem se dado as
atuais emergências de seus movimentos, de um quase nada de presença, uma vez
que, perdidos e escondidos que estavam no sumidouro do tempo, como que por
encanto, ressurgiram dos campos das memórias e se transformaram em explosivos movimentos
alegóricos....Afinal, poder-se-ia até mesmo pensar: elas - as alegorias
e as culturas populares - brincam conosco?
Com
esta compreensão, pouco importa pensar se as alegres imagens de Uma Folia de negros: um carnaval em Santa Luzia do Norte I são
fantásticos delírios das alucinações de Zumba e que por ali nunca estiveram. O
fato é que, elas estão ali na tela regurgitando de uma alegria de negros, de negros
e mais negros.
E,
o que pensar do nomadismo das imagens de Um bloco de carnaval: prá onde eles vão? quando se observa que
na telas, o bloco por ali, está no vazio
como que ali, ele estivesse bastando-se a se mesmo, preenchendo-se dos vazios? Será que Zumba estaria driblando já
ali, a histórica exclusão das culturas populares?
Se
nas imagens de Bumba-meu-boi e seus agregados: as baianas, a banda de pífanos e seus brincantes, o composto da cena e seus fragmentos nos remete para um conjunto de
manifestações afro-alagoanas: o
bumba-meu-boi, as baianas, uma banda de pífano, e mais adiante, apenas as siluetas de negros vestidos
de branco e trançados azuis; nas imagens de Uma articulação primitiva: o Esquenta Mulher, ao mestiços que compõem uma cena, que bem que poderia
estarem ao lado de ....mais uma folia: a Burrinha de Carnaval e seus agregados
para finalmente, como que compondo um painel e articulando uma cena de retirada em fim de noite – pois estão todos
de costas à tela – o fechamento dos movimentos do círculo em Uma folia de negros: um carnaval em Santa Luzia do Norte II.
No
prosseguir do mesmo enquadramento das tradições, Uma armação: Um Reisado se pondo em cena e seu fragmento Um palhaço nativo: o Matéo;
brincadeiras ancestrais de povoados e sítios: Pau de Sebo: um articulador de presenças de meninos vadios, e Uma brincadeira de meninos: o Quebra-Pote
(10), para finalmente no enredamento do círculo, a doçura e singeleza das
imagens temáticas se fecharem sob os movimentos de, O Vendedor de Mel.
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