Manifesto Sururu - Edson Bezerra


Manifesto Sururu

Por Edson Bezerra* 
Para Tia Marcelina[1], Tia Creusa, Maria Lúcia[2], Dirceu Lindoso
 e Mestre Sávio de Almeida[3]

          O Manifesto Sururu quer muito pouco. Quem sabe um pouco mais do que exercitar um certo olhar: um olhar atento por sobre as coisas alagoanas. O Manifesto Sururu não quer apostar e nem pousar em outras imagens. O que ele procura é exercitar olhos e sentidos por sobre (e dentre) antigas e permanentes imagens das coisas alagoanas: olhar primeiramente os canais que interligam as lagoas e os rios.
             Os canais sempre foram as nossas pontes[4] e disto já o sabia Octavio Brandão[5].
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[1] Tia Marcelina, uma ex-escrava de origem africana e matriarca do candomblé em Alagoas, morta durante o movimento que entraria para a história como O Quebra, o movimento de revolta contra a oligarquia de Euclides Malta, quando, no espaço de alguns dias, de trinta a cinqüenta terreiros de candomblé foram quebrados e os pais, filhos e mães de santo foram espancados e humilhados publicamente.
        As reminiscências dos relatos registram que mesmo sabendo antecipadamente da quebra dos terreiros, quando a turba chega ao seu barracão, ao invés de correr, Tia Marcelina se adentrou no espaço sagrado o Peji e que, ao ser espancada a chutes de coturno por um soldado de polícia, ao tempo em que gritava por seu orixá ela dizia, bate, bate, vocês matam o corpo mas não a sabedoria.
Ao oferecermos a escrita do manifesto em sua homenagem, registramos uma dívida histórica no que acreditamos ser ela, a figura histórica mais importante da resistência das culturas populares ao colonialismo e desaculturamento das elites alagoanas para com as particularidades locais.                .
[2] Ambas foram minhas primas. Através da escrita de seus nomes, queremos acentuar o nosso pertencimento às nossas origens afro-alagona.
[3] No que se refere a Dirceu Lindoso e Sávio de Almeida, trata-se de rendermos homenagem a dois historiadores comprometidos com a escrita de uma história construída a partir das camadas oprimidas das Alagoas.
[4] Quando ainda não existiam ou ainda eram precárias as estradas, era pelos canais que navegavam os barcos trazendo os moradores das cidades de Pilar e Marechal Deodoro, situadas no entorno da lagoa Manguaba.
[5] Octavio Brandão foi o primeiro intelectual alagoano a romper com uma historiografia alagoana construída a partir de um olhar das elites. Ele tinha apenas 19 anos quando escreveu Canais e Lagoas, um dos textos fundamentais na inspiração deste manifesto. Octavio Brandão percorreria – a cavalo, de barco e a pé - os arredores da lagoa Mundaú um roteiro de aproximadamente cinco mil quilômetros na pesquisa da fauna, flora, acidentes geográficos e culturas populares nos entornos lacustres.
             Forçado a se exilar de Alagoas em virtude de sua militância comunista, dizem que para não perder o contato com Alagoas, carregaria seixos nos bolsos para se lembrar de suas origens alagoanas. 
*Edson José de Gouveia Bezerra, é músico, compositor, poeta e articulador cultural Graduado em Sociologia, Mestre em Antropologia e Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco,  atualmente é professor da Universidade Estadual de Alagoas (Uneal) e da Seune (Sociedade de Ensino Universitário do Nordeste).

 

 “Os canais sempre foram as nossas pontes”
Maceió nascendo das águas (Foto de Lula Castelo Branco)

O Manifesto Sururu também fala da fome. Não da fome comum, mas da fome de devorar as Alagoas.
             Contra as derrapagens de uma modernidade vazia[6] , uma outra assinalada de coisas alagoanas.
             Novas rotas. Rotas alagoanas: de canais e lagoas, sobretudo.        
           O Manifesto Sururu não está sozinho. O sururu, ele mesmo é o alimento e a caloria de milhares de vidas. O sururu é vida[7].      
 O sururu, ele mesmo é o alimento e a caloria de milhares de vidas. O sururu é vida.
           O Manifesto sururu está atento aos batuques noturnos dos terreiros periféricos[8] fora de rota e também dos milhares de capoeiras espalhados[9].
         O Manifesto Sururu se alegra com a folia dos meninos de rua, com os guerreiros e com as tradições alimentadas pelos povos periféricos. (Celso Brandão)
         Manifesto Sururu: mistura e associação de moluscos, peixes, águas, negros, cafusos, morenos e de todas as mestiçagens possíveis das gentes alagoanas. Manifesto Sururu: do vale do Mundaú[10] para onde houver lagoas.               
            Suas heranças são imagens, suas comidas e seus pais ancestrais. Assim: Calabar é nosso e, sobretudo, Zumbi dos Palmares: migrantes deslocados da colônia central[11].
            Penso em imagens alagoanas: o olhar a cidade de nossos mirantes. Os mirantes são os nossos planetários[12]. Dos mirantes se avista a lagoa, o céu e o mar.
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[6] Todos nós estamos inseridos nos movimentos da modernidade. A mesma modernidade que derruba os edifícios e devassa as tradições, também inventa e reinventa modas e estabelece a emergência de novas relações sociais. O que estamos denominando de modernidade vazia é o testemunho da implantação de uma modernidade esvaziada das coisas alagoanas. É o que se verifica, quando observamos os edifícios com nomes estrangeiros, como também a produção de artefatos culturais esvaziados de um imaginário alagoano.
             É nesse contexto que uma das idéias do Manifesto Sururu, é que, diante do inevitável processo da modernidade alagoana exista a possibilidade de uma abertura para as representações de um imaginário alagoano a partir dos patrimônios históricos associados às contranarrativa, dos rastros das culturas populares e das geografias culturais alagoanas.
[7] Diante das péssimas condições de vida das camadas pobres habitantes dos bairros lacustres, o sururu, devido seu forte índice calórico, durante séculos vem alimentando as camadas populares, e aos gentios até o presente se encontra no centro da sobrevivência das camadas mestiças dos entornos lacustres. 
[8] Existem centenas de terreiros de cultos afros espalhados pelos bairros pobres e periféricos da grande Maceió,  todos, invisibilizados a partir de um olhar situado nos espaços centrais dos bairros de Ponta Verde, Jatiúca, Pajuçara, etc.
[9] Também situados nos bairros periféricos, a existência de aproximadamente de cinco mil capoeiristas espalhados.
[10] O Vale do Mundão foi onde se desenvolveu o território livre da República de Palmares.
[11] Os deslocados nesse contexto, refere-se ao lugar que tanto Calabar quanto Zumbi dos Palmares ocupam nas representações dominantes das elites alagoanas. Só recentemente e após ter sido reconhecido nacionalmente um herói nacional, é que Zumbi começou a ser visibilizado e adotado nos discursos e representações do imaginário alagoano. Todavia, nem Zumbi nem Calabar ainda não têm, ao contrário dos Marechais alagoanos, Floriano Peixoto,  Deodoro e Pedro de Góis Monteiro – estátua ou monumento erguido em suas homenagens.
[12] Alagoas tem o privilégio de possuir uma série de mirantes geograficamente situados: o mirante da Chã de Bebedouro, o da igreja Santa Teresinha, o da Fundação Pierre Chalita, o mirante por detrás do colégio Guido, o da ladeira da Catedral e o mirante do Jacintinho. Dos três primeiros pode-se avistar o acinzentado da lagoa Mundaú e o azul das águas marinhas.
Todavia até hoje eles têm sido tratados como meros acidentes geográficos desvalorizados, e não existe até o presente nenhum projeto com a finalidade de situá-los enquanto um espaço de visitação ou para fins de um turismo sustentável. Os nossos mirantes, todos eles representam uma das características geográficas mais significativas de Maceió.



“Os mirantes são os nossos planetários”.
A cidade do Pilar vista do alto (Foto de Lula Castelo Branco)


 Dos mirantes: ali poderíamos comer além de tapioca e beiju, outras coisas das tribos ancestrais.
              Penso em imagens alagoanas. Penso que uma delas é a Mestra Ilda do Coco tomando (no mínimo) caldinho de sururu na beira da Mundaú[13]
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[13] Mestra das culturas populares alagoanas. Beirando os oitenta anos, além de coco, Mestra Ilda também é mestra de baiana.
 
 Mestra Ilda do Coco (Ilustração de Levi Paz)

Penso em uma outra: a do Major Bonifácio melado de lama e dançando carnaval na rota Bebedouro-Martírios. Ele, o major, bem que poderia ter também dançado capoeira[14].
Uma outra seria pensar a Tia Marcelina[15] como se ela fosse Nossa Senhora dos Prazeres[16].
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[14] Filho das elites alagoanas (também seria prefeito de Maceió) o major Bonifácio é um exemplo de mestiçagem. Em seu tempo ele incentivou as culturas populares, dançava coco, fazia o passo e é considerado até hoje um ícone da animação cultural.
[15]Mãe de Santo de origem africana e Coroa de Dada, Tia Marcelina seria morta vítima de espancamentos no episódio da quebra dos terreiros de 1912 em Maceió.
[16] Nossa Senhora dos Prazeres, a padroeira da cidade de Maceió.


 Tia Marcelina. Quadro de Mestre Zumba (Fotografia de Celso Brandão)

No fundo somos gente-sururu e por isso trazemos nos olhos as imagens de todas as águas.
Das águas do mar e do somatório das dezenas de lagoas, rios e olhos d’água espalhados nas periferias da cidade.
Octávio Brandão: Mundaú: rio dos negros. São Francisco: rio dos brancos.  Que vivam as lagoas todas: as vivas e as mortas. Somos filhos do barro, nascemos entre os batuques dos negros e da mistura da lama.
Por isso: que estória é essa de Terra dos Marechais[17]?
Somos ainda a derradeira sobrevivência (e isso é fantástico) do extermínio do povo Caeté. Em nossa veia, além do povo caeté, pulsa sangue negro. Os brancos nos trouxeram a mistura e (também) a morte.
            De todo modo, mestiços de índios, negros e brancos, estamos vivos.
Cúmplices da modernidade, temos o barro e a lama debaixo dos edifícios e dos asfaltos das ruas.
 Somos filhos de uma cidade restinga[18].
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[17]Dentro da proposta do Manifesto Sururu – a construção de uma identidade a partir das culturas populares – o enunciado de Alagoas, terra dos Marechais é um enunciado das elites alagoanas e enquanto tal, elitizante e elitizado. Afinal, o que os nossos marechais têm a ver com as culturas populares?
[18] Restinga é um tipo de vegetação 


Os nossos edifícios (assim como a nossa modernidade) foram construídos sobre os terreiros dos negros e das moradas dos pobres. A nossa modernidade foi construída sobre os aterros dos manguezais e do massapé e é por isso que às vezes ainda sentimos cócegas nos pés: são eles, os caranguejos e as lamas[19].
Sobre os aterros, se instalaram os movimentos dos negros, seus batuques e danças. Guardamos então muitas saudades.
Por uma nova cartografia: redesenhar roteiros visíveis, remarcar datas e re-escrever novas geografias[20].
            Manifesto Sururu: Simulações sem simulacros.
Que por dentre as cenas das antenas parabólicas, outras cenas de imagens periféricas.
Por uma reinvenção da cidade e celebração pública da memória dos nossos proscritos. E por falar nisso: 
           Viva Calabar!!!!
Além de toda ancestralidade, o erotismo do coco[21] e dos fragmentos de nossas raízes periféricas.
Os nossos terreiros são nossas academias: sementes de ritos e lugares de celebrações e festas. Viva todas as alegrias.  Viva o terreiro de Mestre Felix[22] e de todos os mestres.
 Saudades daqueles tempos. Antes do Quebra de 1912 o batuque era bem maior[23].
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[19] Em tempos primitivos a lagoa Mundaú avançava até o centro da cidade. Há registros de quando durante uma das reformas da Igreja de São Benedito em décadas passadas, em seu sub-solo foram encontradas cascas de sururu.
[20] O manifesto está aqui apontando para a necessidade de uma releitura de uma representação dominante voltada para a comemoração das grandes datas– a Proclamação da República, a emancipação política de Alagoas, etc. – e da celebração dos vultos históricos já desde sempre consagrados.
É com este espírito que o Manifesto Sururu mantém um olhar voltado para os mestres das culturas populares, para vultos históricos marginalizados, e para o esquecimento geográfico da região das lagoas.
[21] O nascimento do coco se deu no espaço de vivência da Serra da Barriga, no entranhado da mestiçagem sob a dominância da cultura Banto.
[22] Mestre Félix foi um dos mestres perseguidos durante o movimento da quebra dos terreiros em Maceió em 1912.
[23] Denominou-se de Quebra, ao movimento de destruição em 1912, de todos os cerca de trinta a cinqüenta terreiros existentes na cidade de Maceió. Acusados de serem adeptos de Euclides Malta, o qual, durante três mandatos consecutivos – dois de mando próprio e um terceiro através de um primo – ocuparia o poder, os praticantes do candomblé tiveram todos os seus terreiros quebrados. A partir dessa data se tornou uma prática comum durante décadas a perseguição e a proibição da prática do Candomblé. Para resistirem, os seus praticantes passaram a realizar seus rituais sem a batida dos atabaques. A partir de então os rituais passaram a ser realizados quase às escondidas e o som dos atabaques foram substituídos por palmas por dentre os burburinho dos cantos.  Foi essa prática que deu origem a modalidade do que se denominaria de “Xangô rezado baixo”, uma prática única em todo o Brasil. Por aí se entende um pouco os meandros da especificidade da cultura da violência em Alagoas.
                Acreditamos, e as evidências sinalizam nesse sentido, que a atual não existência de um carnaval de rua com uma marcante presença popular, se deve ao trauma do fenômeno da quebra dos terreiros. Antes de 1912, era comum na cidade de Maceió a presença dos cortejos dos Maracatus durante o carnaval e festas religiosas. Todavia, com a diáspora dos cultos afros, o Maracatu aos poucos foi desaparecendo e o carnaval foi se tornando uma festa esvaziada das culturas populares.


Temos muitas dívidas: para com a morte de Tia Marcelina, por exemplo.
E temos muitas outras. Uma delas é a seguinte: a Praça 13 de Maio[24] deveria ficar na praça dos Martírios e a estátua do negro Zumbi no lugar da Marechal. Faríamos assim muitas festas e celebraríamos com os batuques o sincretismo de nossas mestiçagens. Quem sabe então ele, Zumbi, não rezaria uma missa pra depois dançar xangô?
Nós repudiamos o etnocídio e proclamamos todos a uma grande alegria.
Viva a alegria de todas as festas. Quem antecedeu os marechais foi Zumbi e antes dele, Calabar[25]. Viva a subversão e a liberdade.
Entre os nossos pobres, os pobres específicos, aqueles que sobreviveram a maleita e a fome estiveram desde sempre os cantadores de coco, de toada, de forró, das rodas de samba, os repentistas, os criadores do martelo alagoano, os capoeiras, os macumbeiros e mandingueiros. Em suma: as nossas almas inspiradoras.
Das lagoas. Também elas invadiram e invadem o mundo das imagens: de Guilherme Roggato[26] a Celso Brandão[27].
            As palavras-mundo de Jorge de Lima e Ledo Ivo[28] são roteiros cinematográficos de um imaginário alagoano.
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[24] A Praça 13 de Maio, situada no bairro do Poço, foi construída em homenagem a data comemorativa da libertação dos escravos. Lá se encontra a estátua erguida em homenagem da Mãe Preta, a figura maternal da escrava mãe de leite
[25] Na cronologia dos fatos, tanto Calabar quanto Zumbi vieram antes dos Marechais. E por que apenas os Marechais têm sido historicamente representados?
[26] Guilherme Roggato. Devemos a ele o primeiro filme rodado em Alagoas, “Casamento é Negócio?” rodado em 1933. O filme, repleto de imagens alagoanas da década de 30, ainda teria em seu elenco o lendário Major Bonifácio da Silveira e o ator Moacir Miranda. Em uma de suas cenas mais significativas, o Pontal da Barra e belas imagens da lagoa Mundaú.
[27] Celso Brandão, um do mais representativo fotógrafo de Alagoas. Descendente de uma família profundamente ligada à preservação das culturas populares – Theo Brandão, José Aloísio Vilela - ele tem a trajetória de sua obra marcada pelo incansável registro das culturas e tipos populares. Além de fotógrafo, ele é também cineasta e, no geral os seus curtas-metragens (Ponto das Ervas, Memória da Vida e do Trabalho, etc.) são registros das culturas populares. É ainda de sua autoria o “Pesca Sururu”, um registro etnográfico sobre a catação de sururu na lagoa Mundaú.

[28] Tanto Jorge de Lima quanto Lêdo Ivo são escritores envolvidos com uma temática inserida em um imaginário alagoano. Já na década de 1930, em seu romance O Anjo, Jorge de Lima escrevia:

Sururus existem em quase todas as lagoas do Brasil. Porém os desta lagoa [Mundaú, de Maceió], devido a circunstâncias especiais explicadas pelos naturalistas, como mistura de água do mar com águas dos rios que deságuam na lagoa, e outras causas, tornam-se como que degenerados, pequenos, gordinhos, gostosíssimos  (Lima,1977:52).

  
(Jorge de Lima, Ilustração de Levi Paz)

Do somatório de todas as águas: as águas do mar que invadiram a todos.
Dos olhos- d’água e do cheiro de maresia contra o cheiro agridoce das canas. Maresia alagoana: ela contaminou a todos: dos pisantes das terras alagoanas, dos índios e negros, brancos e holandeses e até mesmo aos piratas franceses.
...e sobretudo do cheiro do sururu tirado fresquinho da  lama:  alimento dos negros e pobres. Imagem segura e maternidade de nossas imagens mães.
Assim, Mestra Ilda também é Zumbi e Mestre Zumba[29] também.
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[29] Mestre Zumba, nascido na cidade lacustre de Santa Luzia do Norte, na beira da lagoa Mundaú, era filho- de- santo e parente de Tia Marcelina. Zumba foi um artista plástico que durantes décadas era visto vendendo suas telas pelo centro da cidade de Maceió. Em suas imagens, uma alagoanidade composta por negros e uma Alagoas primitiva com imagens enraizantes de coqueirais, lagoas e praias.

 (Zumbi dos Palmares. Ilustração de Levi Paz)

Além de sentimentais, somos anfíbios, quer se queira quer não.
Quem ainda não provou do sururu, tomou banho de lagoa, é aleijado dos olhos e cego no corpo[30].
Viva Deodato, outro negro artista[31].
 Sururu: ao redor dele, os bairros e os povoados se amontoaram e se enredaram: Ponta Grossa, Levada, Pontal, Bebedouro e Rio Novo[32]. Todos filhos das águas.
O sururu então, mais dos que os homens, inventou e recriou as nossas geografias: as cartografias de nossa primitividade. Ali naqueles espaços embrenhados dançava-se macumba, fumava-se liamba, cantava-se o coco e se recriava um mundo: o mundo alagoano[33]. Como isto foi possível?
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[30] Trata-se aqui de acentuarmos o forte valor nutritivo do sururu. Popularmente diz-se tomar na fraqueza a possível sensação de tontura que as pessoas sentem ao tomar pela primeira vez o caldo de sururu.
[31] Mestre Deodato, alagoano nascido na região da levada perto da lagoa Mundaú, e atualmente com mais de 80 anos, além de um grande contador de estórias, é apontado como o melhor artesão de madeira do Brasil.
[32] Os bairros de Ponta Grossa, Levada, Pontal, Bebedouro e Rio Novo são bairros lacustres. No entorno deles se concentram o maior número de mestres de Alagoas.
[33] Trata-se da evocação de uma ambientação de efervescência de rituais e de festas enquanto movimentos necessários para a consolidação de elementos culturais tipicamente alagoanos. Assim, Macumba, liamba e coco, são evocados enquanto elementos dionisíacos e fundamentais na ambientação de uma matriz cultural de origem negra.

Na busca do sururu, os homens pobres desenharam ruas. 


 O catador de Sururu (Foto de Lula Castelo Branco)

Sururu: espaços coletivos, maternidade e memória. Nascedouro e rotas de outros espaços geográficos.  Espaços de uma memória possível.
  
(Celso Brandão. Ilustração de Levi Paz)

Viva Jorge de Lima e Celso Brandão que filmou o “Cata Sururu”.

Levada. Alguém lembra que ali havia um porto?

 (Foto do antigo porto existente no bairro da Levada no início do século XIX)

             Alagoas não foi feita (somente) pra turista ver.
             Pra turista ver e olhar o mar[34].
             No além-mar, pensar não outras terras. No além-mar pensar nossos interiores. Lagoas interiorizadas[35]. Pra turista ver também. E que ele venha, e já que comemos o bispo Sardinha, o comeremos também, mas antes disso ensinar ele a tomar banho de lagoa e comer caranguejo uça[36] com as mãos. Aliás, com todo estrangeiro deveria ser assim[37].
Turismo primitivo: a Bica da Pedra, o banho no Cardoso, o Catolé[38]. Lugares de luz com águas frescas e claras.
O bar das Ostras[39].
Os portos de Bebedouro e de Santa Luzia do Norte, alguém lembra?
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[34] Trata-se de uma crítica à prática predatória do turismo de massa enquanto um produto típico de uma modernidade vazia. Ao tempo em que também sinalizamos (como veremos em seguida) para a necessidade de um olhar descolonizador voltado para os nossos interiores alagoanos. De resto, interiores com paisagens distintas das imagens litorâneas com imagens saturadas de Sol e Mar.
                 Um olhar descolonizado e voltado para as coisas alagoanas deverá ser descortinado através de uma geografia pontuada por pequenas lagoas e rios, lugares de ricos acidentes geográficos e ricas e exuberantes em culturas populares.
[35] Em Alagoas ainda existe algo em torno de sessenta lagoas espalhadas pelos interiores. Segundo o levantamento e classificação do professor Moisés Calu, elas estariam distribuídas do seguinte modo:
Lagoas Litorâneas: lagoa Mundaú, lagoa Manguaba, lagoa do Roteiro, lagoa de Jequiá, lagoa Escura, lagoa do Tabuleiro, lagoa de Guaxuma, lagoa Vermelha e outras menores (lagoa do timbó,Lagoa dos Patos Lagoa do Pau, Lagoa das Pacas, Lagoa Comprida,Lagoa Doce, Lagoa do Mangue, Lagoa do Taboado,  Lagoa Azeda,Lagoa de Jacarecica,Lagoa da Anta). Lagoas da Margem do São Francisco: Lagoa do Tororó, Lagoa de Santiago, Lagoa da Jacobina, Lagoa da Cabeceira, Lagoa da Várzes, Lagoa do Sanção, Lagoa da Maarcação, Lagoa do Munguengue, Lagoa de Baixo. As localizadas entre Pão de Açúcar e São Brás, a partir de São Brás em direção a Penedo: Lagoa comprida, Lagoa do Meio, Lagoa Tatuia, Lagoa da Várzea, Lagoa do Campo, Lagoa do Sampaio, Lagoa Enxada, Lagoa Mocambo, Lagoa da Porta, Lagoa do Cangote, Lagoa do Caldeirão, Lagoa do Sobrado, Lagoa Grande, Lagoa do Engenho, Lagoa Marizeiro, Lagoa Salgada. As localizadas abaixo do município de Penedo em direção ao estuário do São Francisco: Lagoa do Botafogo, Lagoa do Mangue, Lagoa da Várzea Grande, Lagoa Caiada. Lagoas dos interiores: Lagoa da Canoa, Lagoa do Rancho, Lagoa do Pai Gonçalo, Lagoa de Santa Luzia, Lagoa do Curral, Lagoa do Gado Bravo, Lagoa do Pé leve, Lagoa do Lunga, Lagoa dos Porcos, Lagoa do Canto, Lagoa Nova. As lagoas recentemente registradas com exclusividade pelo professor e pesquisador professor Moisés Calu: Lagoa do Caldeirão, Lagoa do Capim, Lagoa Comprida, Lagoa Grande, Lagoa da Pedra, Lagoa do Coxo (Destacamos que este minucioso levantamento se deve ao professor de geografia Moisés Calu da Universidade Estadual de Alagoas).
Ao redor delas um verdadeiro relicário da culinária alagoana e espaços de permanências das culturas populares alagoanas.
[36]Trata-se de um crustáceo existente nas regiões lacustres mangues, rios e mangues. De forte valor nutritivo, ele é um dos frutos do mar que compõem a culinária alagoana.
[37] Ou seja: praticar a antropofagia a exemplo do que fizeram os caetés com o português branco e colonizador.
                 O que está em jogo com este enunciado é não apenas apontar para elementos atávicos e primitivos (tomar banho de lagoa e comer caranguejo Uca com as mãos) na defesa de uma cultura tipicamente alagoana, mas, sobretudo de apontar e firmar pontos de resistência afim de que possamos preservar uma espécie de matriz alagoana no movimento particular de nossas mestiçagens.
[38] Quando o banho de mar ainda não havia se tornado uma prática glamurosa das elites, a Bica da Pedra, o banho no Cardoso e o Catolé eram espaços lacustres e fluviais conhecidos enquanto espaços de vivências, recreações e lazer.
[39]O Bar das Ostras foi um bar muito conhecido e freqüentado em Maceió durante as décadas de 40, 50 e 60 do século passado. Ele se tornou famoso em virtude de sua culinária à base dos frutos oriundos das geografias culturais alagoanas.  

"Sururulândia[40]": Esta é nossa riqueza e desde sempre memória.
 Mas aconteceu que Maceió fugiu da Mundaú. Pensou que a lama e os caranguejos e os homens-caranguejos iam engolir ela[41]!!!!
A nossa aristocracia, com medo e nojo fugiu do barro, e fugiriam também da zoadas dos batuques, dos cocos e das macumbas e foram morar lá na banda das praias: Pajuçara, Ponta Verde e Jatiúca. E naquelas praias, há pouco desertas, no lugar dos casebres e casas de paus a pique, foram montados os edifícios e as luminárias elegantes da cidade.


 Os antigos e primitivos moradores da praia da Pajuçara em suas casas de palha (Fotos de Arquivo do Museu da Imagem do Som)

 E as águas do mar são diferentes das águas da lagoa.
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[40] Era essa uma das referências a Alagoas, quando nas primeiras décadas do século XX o sururu era amplamente consumido e compartilhado no imaginário alagoano.
[41] Trata-se de assinalar aqui as mudanças ocorridas no espaço urbano de Maceió em decorrência do processo de desenvolvimento da modernidade, quando em conseqüência do avanço de novos espaços urbanos, as elites alagoanas da capital passaram a ocupar a região das praias. De passagem lembramos que a valorização das praias enquanto um espaço saudável e de lazer, é uma construção tardia da modernidade. No começo do século as praias eram lugares desertos e dentre outras coisas, utilizadas para depósito de lixo e dejetos.
            Assinala-se também aqui, que um dos traços da modernidade alagoana - e fugiriam também da zoadas dos batuques, do coco e das macumbas – foi a instalação de uma cultura urbana e de elite apartada das geografias e dos movimentos das culturas populares


A gente sururu então ficou sozinha.
Formou-se deste então duas gentes: a gente sururu e o povo rico da cana.
De um certo modo, ao gosto do sururu, se somou o cheiro da cana. Alagoas então é de todo um pouco de cada pedaço.
Mas, ao contrário da maternidade dos mariscos, os capins da cana se tornaram baionetas retocadas de sangue.
Na verdade, a cana nunca foi doce. Zumbi e os negros já desde sempre sabiam[42].
O sururu também não é doce. Mas entre o doce e o salgado, e somado às mestiçagens das cantigas e do somatório das estórias todas, ele foi dando alma e corpo às gentes alagoanas[43].
Por isso, é uma pena que o Farol não derrame sua luz na Mundaú.
O Farol nunca iluminou as lagoas. Nas lagoas não navegam os navios. Mas, afinal o que trazem os navios?  Nas lagoas apenas navegam os peixes, os homens e os mariscos adormecidos e preguiçosos: o bagre, o mandim, o siri, o caranguejo e o sururu enfiado na lama[44].
Mas, afinal, se toda festa tem um tempo, qual o tempo sururu?
Sururu, cultura oral sururu. Sinestesias: pureza aberta e sem perigo. Sinestesias: um dia um branco tomou caldo de sururu e ficou doido. Sururu: comida dos pobres:
“Nossa miséria é a nossa riqueza” [45].
Que ressuscitemos todas as histórias
E que no banquete das mestiçagens periféricas
E na festa de todos os povos ressurgentes
Morram colonizadores e colonizados[46].
E que por dentre o barro e cheiro da lama
E no somatório de todas as imagens, a Mundaú central,
E nela a gente sururu seja imensa
Feito um oceano sem margens[47].
No somatório de todas as águas. 
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[42] A referência nesse contexto é à escravidão, uma relação social historicamente associada à exploração da cana-de-açúcar é fundamental na solidificação de uma teia de poder associada a cultura da violência.
[43] O sururu está sendo colocado aqui enquanto uma alegoria da mestiçagem alagoana.
[44] Mais uma vez aqui, uma referência crítica à modernidade alagoana. Enquanto meio de transporte os navios foram os veículos do desenvolvimento do colonialismo e consolidação da modernidade.
Neste contexto, a referência à iluminação das lagoas, está apontando para um olhar voltado para o interior de Alagoas, para as particularidades da flora, os coqueiros, sobretudo, a fauna lacustre, o bagre, o mandim, o caranguejo, etc.
[45] Frase de Tavares Bastos.
[46] A morte de colonizados e colonizadores – pólos de um mesmo núcleo, a colonização – é imprescindível para o nascimento de um olhar descolonizado e voltado para um imaginário das coisas alagoanas.
[47] Um oceano sem margens. Frase extraída de um poema do poeta Zé Paulo do município de Pão de Açúcar lá pelas bandas do alto sertão de Alagoas, beira do São Francisco.