Manifesto Sururu
Por Edson
Bezerra*
O Manifesto Sururu quer muito pouco. Quem
sabe um pouco mais do que exercitar um certo olhar: um olhar atento por sobre as coisas alagoanas.
O Manifesto Sururu não quer apostar e
nem pousar em outras imagens. O que ele procura é exercitar olhos e sentidos
por sobre (e dentre) antigas e permanentes imagens das coisas alagoanas: olhar
primeiramente os canais que interligam as
lagoas e os rios.
Os canais sempre foram as nossas
pontes[4] e
disto já o sabia Octavio Brandão[5].
__________________
[1] Tia
Marcelina, uma ex-escrava de origem africana e matriarca do candomblé
em Alagoas, morta durante o movimento que entraria para a história como O
Quebra, o movimento de revolta contra a oligarquia de Euclides Malta,
quando, no espaço de alguns dias, de trinta a cinqüenta terreiros de candomblé
foram quebrados e os pais, filhos e mães de santo foram espancados e humilhados
publicamente.
As reminiscências dos relatos registram que mesmo
sabendo antecipadamente da quebra dos terreiros, quando a turba chega ao seu
barracão, ao invés de correr, Tia Marcelina se adentrou no espaço
sagrado o Peji e que, ao ser espancada a chutes de coturno por um soldado
de polícia, ao tempo em que gritava por seu orixá ela dizia, bate, bate, vocês matam o corpo mas não a
sabedoria.
Ao
oferecermos a escrita do manifesto em
sua homenagem, registramos uma dívida histórica no que acreditamos ser ela, a
figura histórica mais importante da resistência das culturas populares ao colonialismo e desaculturamento das elites
alagoanas para com as particularidades locais. .
[2]
Ambas foram minhas primas. Através da escrita de seus nomes, queremos acentuar
o nosso pertencimento às nossas origens afro-alagona.
[3] No
que se refere a Dirceu Lindoso e Sávio de Almeida, trata-se de rendermos
homenagem a dois historiadores comprometidos com a escrita de uma história construída a partir das camadas oprimidas das Alagoas.
[4]
Quando ainda não existiam ou ainda eram precárias as estradas, era pelos canais
que navegavam os barcos trazendo os moradores das cidades de Pilar e Marechal
Deodoro, situadas no entorno da lagoa Manguaba.
[5] Octavio Brandão foi o primeiro intelectual alagoano a romper com uma
historiografia alagoana construída a partir de um olhar das elites. Ele tinha
apenas 19 anos quando escreveu Canais e
Lagoas, um dos textos fundamentais na inspiração deste manifesto. Octavio
Brandão percorreria – a cavalo, de barco
e a pé - os arredores da lagoa Mundaú um roteiro de aproximadamente
cinco mil quilômetros na pesquisa da fauna,
flora, acidentes geográficos e culturas
populares nos entornos lacustres.
Forçado
a se exilar de Alagoas em virtude de sua militância comunista, dizem que para
não perder o contato com Alagoas, carregaria seixos nos bolsos para se lembrar
de suas origens alagoanas.
*Edson José de
Gouveia Bezerra, é músico, compositor, poeta e articulador cultural Graduado em
Sociologia, Mestre em Antropologia e Doutor em Sociologia pela Universidade
Federal de Pernambuco, atualmente é
professor da Universidade Estadual de Alagoas (Uneal) e da Seune (Sociedade de
Ensino Universitário do Nordeste).
“Os canais sempre foram as nossas pontes”
Maceió nascendo das águas (Foto de
Lula Castelo Branco)
O Manifesto Sururu também fala da fome.
Não da fome comum, mas da fome de devorar as Alagoas.
Contra as derrapagens de uma modernidade vazia[6] ,
uma outra assinalada de coisas alagoanas.
Novas rotas. Rotas alagoanas: de
canais e lagoas, sobretudo.
O Manifesto Sururu não está sozinho. O sururu, ele mesmo é o alimento e a caloria de milhares de vidas. O
sururu é vida[7].
O sururu,
ele mesmo é o alimento e a caloria de milhares de vidas. O sururu é vida.
O Manifesto sururu está atento aos batuques noturnos dos terreiros
periféricos[8] fora de
rota e também dos milhares de capoeiras espalhados[9].
O Manifesto Sururu se alegra com a folia dos meninos de rua,
com os guerreiros e com as tradições alimentadas pelos povos periféricos. (Celso Brandão)
Manifesto Sururu: mistura e
associação de moluscos, peixes, águas, negros, cafusos, morenos e de todas as
mestiçagens possíveis das gentes alagoanas. Manifesto Sururu: do vale do Mundaú[10]
para onde houver lagoas.
Suas
heranças são imagens, suas comidas e seus pais ancestrais. Assim: Calabar é
nosso e, sobretudo, Zumbi dos Palmares: migrantes deslocados da colônia central[11].
Penso em
imagens alagoanas: o olhar a cidade de nossos mirantes. Os mirantes são
os nossos planetários[12].
Dos mirantes se avista a lagoa, o céu e o mar.
__________________
[6] Todos nós estamos inseridos nos movimentos da modernidade. A mesma modernidade que
derruba os edifícios e devassa as tradições, também inventa e reinventa modas e
estabelece a emergência de novas relações sociais. O que estamos denominando de
modernidade
vazia é o testemunho da implantação de uma modernidade esvaziada das coisas alagoanas. É o que
se verifica, quando observamos os edifícios com nomes estrangeiros, como também
a produção de artefatos culturais
esvaziados de um imaginário alagoano.
É
nesse contexto que uma das idéias do Manifesto Sururu, é que, diante do
inevitável processo da modernidade
alagoana exista a possibilidade de uma abertura para as representações de
um imaginário alagoano a partir dos patrimônios históricos associados às
contranarrativa, dos rastros das culturas populares e das geografias culturais alagoanas.
[7] Diante
das péssimas condições de vida das camadas pobres habitantes dos bairros
lacustres, o sururu, devido seu forte índice calórico, durante séculos vem
alimentando as camadas populares, e aos gentios até o presente se encontra no
centro da sobrevivência das camadas mestiças dos entornos lacustres.
[8]
Existem centenas de terreiros de cultos afros espalhados pelos bairros pobres e
periféricos da grande Maceió, todos,
invisibilizados a partir de um olhar situado nos espaços centrais dos bairros
de Ponta Verde, Jatiúca, Pajuçara, etc.
[9] Também
situados nos bairros periféricos, a existência de aproximadamente de cinco mil
capoeiristas espalhados.
[10] O Vale
do Mundão foi onde se desenvolveu o território livre da República de Palmares.
[11] Os deslocados nesse contexto, refere-se
ao lugar que tanto Calabar quanto Zumbi dos Palmares ocupam nas representações
dominantes das elites alagoanas. Só recentemente e após ter sido reconhecido
nacionalmente um herói nacional, é que Zumbi começou a ser visibilizado e
adotado nos discursos e representações do imaginário alagoano. Todavia, nem
Zumbi nem Calabar ainda não têm, ao contrário dos Marechais alagoanos, Floriano
Peixoto, Deodoro e Pedro de Góis
Monteiro – estátua ou monumento erguido em suas homenagens.
[12] Alagoas tem o privilégio de possuir uma série de
mirantes geograficamente situados: o mirante da Chã de Bebedouro, o da igreja
Santa Teresinha, o da Fundação Pierre Chalita, o mirante por detrás do colégio Guido, o da ladeira da Catedral e o mirante do Jacintinho. Dos três primeiros
pode-se avistar o acinzentado da lagoa Mundaú e o azul das águas marinhas.
Todavia até hoje eles têm sido tratados como meros
acidentes geográficos desvalorizados, e não existe até o presente nenhum
projeto com a finalidade de situá-los enquanto um espaço de visitação ou para
fins de um turismo sustentável. Os nossos mirantes, todos eles representam uma
das características geográficas mais significativas de Maceió.
“Os mirantes são os nossos planetários”.
A cidade
do Pilar vista do alto (Foto de Lula Castelo Branco)
Dos mirantes: ali poderíamos comer além de
tapioca e beiju, outras coisas das tribos ancestrais.
Penso em imagens alagoanas. Penso que uma delas é a Mestra Ilda do Coco tomando (no mínimo) caldinho de sururu na
beira da Mundaú[13].
__________________
[13] Mestra das culturas populares alagoanas. Beirando os
oitenta anos, além de coco, Mestra Ilda também é mestra de baiana.
Mestra Ilda do Coco (Ilustração de Levi Paz)
Penso em uma outra: a do Major
Bonifácio melado de lama e dançando carnaval na rota Bebedouro-Martírios.
Ele, o major, bem que poderia ter também dançado capoeira[14].
Uma outra seria
pensar a Tia Marcelina[15]
como se ela fosse Nossa Senhora dos Prazeres[16].
__________________
[14] Filho das elites alagoanas (também seria prefeito de
Maceió) o major Bonifácio é um exemplo de mestiçagem.
Em seu tempo ele incentivou as culturas
populares, dançava coco, fazia o passo e é considerado até hoje um ícone da
animação cultural.
[15]Mãe de Santo de origem africana e Coroa de Dada, Tia Marcelina
seria morta vítima de espancamentos no episódio da quebra dos terreiros de 1912
em Maceió.
[16] Nossa
Senhora dos Prazeres, a padroeira da cidade de Maceió.
Tia Marcelina. Quadro
de Mestre Zumba (Fotografia de Celso Brandão)
No fundo somos gente-sururu
e por isso trazemos nos olhos as imagens de todas as águas.
Das águas do
mar e do somatório das dezenas de lagoas, rios e olhos
d’água espalhados nas periferias da cidade.
Octávio Brandão: Mundaú: rio dos negros. São Francisco:
rio dos brancos. Que vivam as lagoas todas: as vivas e as
mortas. Somos filhos do barro, nascemos entre os batuques
dos negros e da mistura da lama.
Por isso: que estória é essa de Terra dos Marechais[17]?
Somos ainda a derradeira sobrevivência (e isso é fantástico) do
extermínio do povo Caeté. Em nossa veia, além do povo caeté, pulsa sangue
negro. Os brancos nos trouxeram a mistura e (também) a morte.
De
todo modo, mestiços de índios,
negros e brancos, estamos vivos.
Cúmplices da modernidade, temos o barro e a lama debaixo
dos edifícios e dos asfaltos das ruas.
Somos filhos de uma cidade restinga[18].
__________________
[17]Dentro da proposta do Manifesto Sururu – a construção de uma identidade a partir das culturas populares – o enunciado de Alagoas, terra dos Marechais é um enunciado das elites alagoanas e enquanto tal, elitizante e elitizado. Afinal, o que os nossos marechais têm a ver com as culturas populares?
[17]Dentro da proposta do Manifesto Sururu – a construção de uma identidade a partir das culturas populares – o enunciado de Alagoas, terra dos Marechais é um enunciado das elites alagoanas e enquanto tal, elitizante e elitizado. Afinal, o que os nossos marechais têm a ver com as culturas populares?
[18] Restinga
é um tipo de vegetação
Os nossos edifícios (assim
como a nossa modernidade) foram construídos sobre os terreiros dos negros e das
moradas dos pobres. A nossa modernidade foi construída sobre os aterros dos
manguezais e do massapé e é por isso que às vezes ainda sentimos
cócegas nos pés: são eles, os caranguejos
e as lamas[19].
Sobre os aterros, se instalaram os movimentos dos negros, seus batuques e
danças. Guardamos então muitas saudades.
Por uma nova cartografia: redesenhar
roteiros visíveis, remarcar datas e re-escrever novas geografias[20].
Manifesto Sururu: Simulações sem
simulacros.
Que por dentre as cenas das antenas parabólicas, outras cenas de imagens
periféricas.
Por uma reinvenção da cidade e
celebração pública da memória dos nossos proscritos. E por falar nisso:
Viva Calabar!!!!
Além de toda ancestralidade, o erotismo do coco[21] e
dos fragmentos de nossas raízes periféricas.
Os nossos terreiros são nossas academias: sementes de ritos e
lugares de celebrações e festas. Viva todas as alegrias. Viva o terreiro de Mestre Felix[22] e
de todos os mestres.
Saudades daqueles tempos. Antes do Quebra
de 1912 o batuque era bem maior[23].
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[19] Em tempos primitivos a lagoa Mundaú avançava até o centro da cidade. Há registros de quando durante uma das reformas da Igreja de São Benedito em décadas passadas, em seu sub-solo foram encontradas cascas de sururu.
[19] Em tempos primitivos a lagoa Mundaú avançava até o centro da cidade. Há registros de quando durante uma das reformas da Igreja de São Benedito em décadas passadas, em seu sub-solo foram encontradas cascas de sururu.
[20] O manifesto está aqui apontando para a necessidade de
uma releitura de uma representação
dominante voltada para a comemoração das grandes datas– a Proclamação da República, a emancipação
política de Alagoas, etc. – e da celebração dos vultos históricos já desde
sempre consagrados.
É com este espírito que o Manifesto Sururu mantém
um olhar voltado para os mestres das culturas populares, para vultos históricos
marginalizados, e para o esquecimento
geográfico da região das lagoas.
[21] O
nascimento do coco se deu no espaço de vivência da Serra da Barriga, no
entranhado da mestiçagem sob a dominância da cultura Banto.
[22]
Mestre Félix foi um dos mestres perseguidos durante o movimento da quebra dos
terreiros em Maceió em 1912.
[23]
Denominou-se de Quebra, ao movimento
de destruição em 1912, de todos os cerca de trinta a cinqüenta terreiros
existentes na cidade de Maceió. Acusados de serem adeptos de Euclides Malta, o
qual, durante três mandatos consecutivos – dois de mando próprio e um terceiro
através de um primo – ocuparia o poder, os praticantes do candomblé tiveram
todos os seus terreiros quebrados. A partir dessa data se tornou uma prática
comum durante décadas a perseguição e a proibição da prática do Candomblé. Para
resistirem, os seus praticantes passaram a realizar seus rituais sem a batida
dos atabaques. A partir de então os rituais passaram a ser realizados quase às
escondidas e o som dos atabaques foram substituídos por palmas por dentre os
burburinho dos cantos. Foi essa prática
que deu origem a modalidade do que se denominaria de “Xangô rezado baixo”, uma prática única em todo o Brasil. Por aí se
entende um pouco os meandros da especificidade da cultura da violência em Alagoas.
Acreditamos, e as evidências sinalizam nesse sentido,
que a atual não existência de um carnaval de rua com uma marcante presença
popular, se deve ao trauma do fenômeno da quebra dos terreiros. Antes de 1912,
era comum na cidade de Maceió a presença dos cortejos dos Maracatus durante o
carnaval e festas religiosas. Todavia, com a diáspora dos cultos afros, o
Maracatu aos poucos foi desaparecendo e o carnaval foi se tornando uma festa
esvaziada das culturas populares.
Temos muitas dívidas: para
com a morte de Tia Marcelina, por exemplo.
E temos muitas outras. Uma delas é a seguinte:
a Praça 13 de Maio[24] deveria
ficar na praça dos Martírios e a estátua do negro Zumbi no lugar da Marechal.
Faríamos assim muitas festas e celebraríamos com os batuques o sincretismo de
nossas mestiçagens. Quem sabe então ele, Zumbi, não rezaria uma missa pra
depois dançar xangô?
Nós repudiamos o etnocídio e proclamamos todos a uma
grande alegria.
Viva a alegria de todas as festas. Quem antecedeu os marechais foi Zumbi
e antes dele, Calabar[25].
Viva a subversão e a liberdade.
Entre os nossos pobres, os
pobres específicos, aqueles que sobreviveram a maleita e a fome estiveram desde
sempre os cantadores de coco, de toada, de forró, das rodas de samba, os
repentistas, os criadores do martelo alagoano, os capoeiras, os macumbeiros e
mandingueiros. Em suma: as nossas almas inspiradoras.
Das lagoas. Também elas invadiram e invadem o mundo das
imagens: de Guilherme Roggato[26] a
Celso Brandão[27].
As
palavras-mundo de Jorge de Lima e
Ledo Ivo[28] são roteiros cinematográficos de um
imaginário alagoano.
__________________
[24] A Praça 13 de Maio, situada no bairro do Poço, foi construída em homenagem a data comemorativa da libertação dos escravos. Lá se encontra a estátua erguida em homenagem da Mãe Preta, a figura maternal da escrava mãe de leite
[24] A Praça 13 de Maio, situada no bairro do Poço, foi construída em homenagem a data comemorativa da libertação dos escravos. Lá se encontra a estátua erguida em homenagem da Mãe Preta, a figura maternal da escrava mãe de leite
[25] Na cronologia dos fatos, tanto Calabar quanto Zumbi vieram
antes dos Marechais. E por que apenas os Marechais têm sido historicamente
representados?
[26] Guilherme Roggato. Devemos a ele o primeiro filme
rodado em Alagoas, “Casamento é Negócio?” rodado em 1933. O filme, repleto de
imagens alagoanas da década de 30, ainda teria em seu elenco o lendário Major
Bonifácio da Silveira e o ator Moacir Miranda. Em uma de suas cenas mais
significativas, o Pontal da Barra e belas imagens da lagoa Mundaú.
[27] Celso Brandão, um do mais representativo fotógrafo de
Alagoas. Descendente de uma família profundamente ligada à preservação das
culturas populares – Theo Brandão, José Aloísio Vilela -
ele tem a trajetória de sua obra marcada pelo incansável registro das culturas e tipos populares. Além de fotógrafo, ele é também cineasta
e, no geral os seus curtas-metragens (Ponto das Ervas, Memória da Vida e do
Trabalho, etc.) são registros das
culturas populares. É ainda de sua
autoria o “Pesca Sururu”, um registro etnográfico sobre a catação de sururu na
lagoa Mundaú.
[28]
Tanto Jorge de Lima quanto Lêdo Ivo são escritores envolvidos com uma temática
inserida em um imaginário alagoano. Já na década de 1930, em seu romance O
Anjo, Jorge de Lima escrevia:
Sururus
existem em quase todas as lagoas do Brasil. Porém os desta lagoa [Mundaú, de
Maceió], devido a circunstâncias especiais explicadas pelos naturalistas, como
mistura de água do mar com águas dos rios que deságuam na lagoa, e outras
causas, tornam-se como que degenerados, pequenos, gordinhos, gostosíssimos (Lima,1977:52).
(Jorge de Lima, Ilustração
de Levi Paz)
Do somatório de todas as
águas: as águas do mar que invadiram a todos.
Dos olhos- d’água e do cheiro de maresia contra o cheiro agridoce das
canas. Maresia alagoana: ela
contaminou a todos: dos pisantes das terras alagoanas, dos índios e negros, brancos e holandeses e até mesmo aos piratas
franceses.
...e sobretudo
do cheiro do sururu tirado fresquinho da
lama: alimento dos negros e pobres. Imagem segura e
maternidade de nossas imagens mães.
Assim, Mestra Ilda também é Zumbi e Mestre Zumba[29]
também.
__________________
[29] Mestre Zumba, nascido na cidade lacustre de Santa Luzia do Norte, na beira da lagoa Mundaú, era filho- de- santo e parente de Tia Marcelina. Zumba foi um artista plástico que durantes décadas era visto vendendo suas telas pelo centro da cidade de Maceió. Em suas imagens, uma alagoanidade composta por negros e uma Alagoas primitiva com imagens enraizantes de coqueirais, lagoas e praias.
[29] Mestre Zumba, nascido na cidade lacustre de Santa Luzia do Norte, na beira da lagoa Mundaú, era filho- de- santo e parente de Tia Marcelina. Zumba foi um artista plástico que durantes décadas era visto vendendo suas telas pelo centro da cidade de Maceió. Em suas imagens, uma alagoanidade composta por negros e uma Alagoas primitiva com imagens enraizantes de coqueirais, lagoas e praias.
(Zumbi dos Palmares. Ilustração de Levi Paz)
Além de sentimentais, somos anfíbios, quer se queira quer não.
Quem ainda não
provou do sururu, tomou banho de lagoa, é aleijado dos olhos e cego no corpo[30].
Viva Deodato,
outro negro artista[31].
Sururu:
ao redor dele, os bairros e os povoados se amontoaram e se enredaram: Ponta
Grossa, Levada, Pontal, Bebedouro e Rio Novo[32].
Todos filhos das águas.
O sururu então, mais dos que os homens, inventou e
recriou as nossas geografias: as cartografias de nossa primitividade. Ali naqueles
espaços embrenhados dançava-se macumba, fumava-se liamba, cantava-se o coco e
se recriava um mundo: o mundo alagoano[33].
Como isto foi possível?
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[30] Trata-se aqui de acentuarmos o forte valor nutritivo do sururu. Popularmente diz-se tomar na fraqueza a possível sensação de tontura que as pessoas sentem ao tomar pela primeira vez o caldo de sururu.
[30] Trata-se aqui de acentuarmos o forte valor nutritivo do sururu. Popularmente diz-se tomar na fraqueza a possível sensação de tontura que as pessoas sentem ao tomar pela primeira vez o caldo de sururu.
[31] Mestre Deodato, alagoano nascido na região da levada
perto da lagoa Mundaú, e atualmente com mais de 80 anos, além de um grande
contador de estórias, é apontado como o melhor artesão de madeira do Brasil.
[32] Os
bairros de Ponta Grossa, Levada, Pontal, Bebedouro e Rio Novo são bairros
lacustres. No entorno deles se concentram o maior número de mestres de Alagoas.
[33] Trata-se da evocação de uma ambientação de
efervescência de rituais e de festas enquanto movimentos necessários para a
consolidação de elementos culturais tipicamente alagoanos. Assim, Macumba,
liamba e coco, são evocados enquanto elementos dionisíacos e fundamentais na
ambientação de uma matriz cultural de origem negra.
Na busca do sururu, os homens pobres desenharam ruas.
O catador de Sururu (Foto de Lula
Castelo Branco)
Sururu: espaços coletivos,
maternidade e memória. Nascedouro e rotas de outros espaços geográficos. Espaços de uma memória possível.
(Celso Brandão. Ilustração de
Levi Paz)
Viva Jorge de Lima e Celso Brandão que filmou o “Cata Sururu”.
Levada. Alguém
lembra que ali havia um porto?
(Foto do antigo porto existente no bairro da Levada
no início do século XIX)
Alagoas não foi feita (somente) pra
turista ver.
Pra turista ver e olhar o mar[34].
No além-mar, pensar não outras terras. No além-mar pensar nossos
interiores. Lagoas interiorizadas[35].
Pra turista ver também. E que ele venha, e já que comemos o bispo Sardinha, o
comeremos também, mas antes disso ensinar ele a tomar banho de lagoa e comer
caranguejo uça[36]
com as mãos. Aliás, com todo estrangeiro deveria ser assim[37].
Turismo
primitivo: a Bica da Pedra, o banho no Cardoso, o Catolé[38].
Lugares de luz com águas frescas e claras.
O bar das Ostras[39].
Os portos de Bebedouro e de Santa Luzia do Norte, alguém lembra?
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[34] Trata-se de uma crítica à prática predatória do turismo de massa enquanto um produto típico de uma modernidade vazia. Ao tempo em que também sinalizamos (como veremos em seguida) para a necessidade de um olhar descolonizador voltado para os nossos interiores alagoanos. De resto, interiores com paisagens distintas das imagens litorâneas com imagens saturadas de Sol e Mar.
[34] Trata-se de uma crítica à prática predatória do turismo de massa enquanto um produto típico de uma modernidade vazia. Ao tempo em que também sinalizamos (como veremos em seguida) para a necessidade de um olhar descolonizador voltado para os nossos interiores alagoanos. De resto, interiores com paisagens distintas das imagens litorâneas com imagens saturadas de Sol e Mar.
Um
olhar
descolonizado e voltado para as coisas alagoanas deverá ser
descortinado através de uma geografia pontuada por pequenas lagoas e rios,
lugares de ricos acidentes geográficos e ricas e exuberantes em culturas populares.
[35] Em Alagoas ainda existe algo em torno de sessenta
lagoas espalhadas pelos interiores. Segundo
o levantamento e classificação do professor Moisés Calu, elas estariam
distribuídas do seguinte modo:
Lagoas Litorâneas: lagoa Mundaú, lagoa Manguaba, lagoa do Roteiro, lagoa
de Jequiá, lagoa Escura, lagoa do Tabuleiro, lagoa de Guaxuma, lagoa Vermelha e
outras menores (lagoa do timbó,Lagoa dos Patos Lagoa do Pau, Lagoa das Pacas,
Lagoa Comprida,Lagoa Doce, Lagoa do Mangue, Lagoa do Taboado, Lagoa Azeda,Lagoa de Jacarecica,Lagoa da
Anta). Lagoas da Margem do São
Francisco: Lagoa do Tororó, Lagoa de Santiago, Lagoa da Jacobina, Lagoa da
Cabeceira, Lagoa da Várzes, Lagoa do Sanção, Lagoa da Maarcação, Lagoa do
Munguengue, Lagoa de Baixo. As
localizadas entre Pão de Açúcar e São Brás, a partir de São Brás em direção a
Penedo: Lagoa comprida, Lagoa do Meio, Lagoa Tatuia, Lagoa da Várzea, Lagoa
do Campo, Lagoa do Sampaio, Lagoa Enxada, Lagoa Mocambo, Lagoa da Porta, Lagoa
do Cangote, Lagoa do Caldeirão, Lagoa do Sobrado, Lagoa Grande, Lagoa do
Engenho, Lagoa Marizeiro, Lagoa Salgada.
As localizadas abaixo do município de Penedo em direção ao estuário do São
Francisco: Lagoa do Botafogo, Lagoa do Mangue, Lagoa da Várzea Grande,
Lagoa Caiada. Lagoas dos interiores:
Lagoa da Canoa, Lagoa do Rancho, Lagoa do Pai Gonçalo, Lagoa de Santa Luzia,
Lagoa do Curral, Lagoa do Gado Bravo, Lagoa do Pé leve, Lagoa do Lunga, Lagoa
dos Porcos, Lagoa do Canto, Lagoa Nova.
As lagoas recentemente registradas com exclusividade pelo professor e
pesquisador professor Moisés Calu: Lagoa do Caldeirão, Lagoa do Capim,
Lagoa Comprida, Lagoa Grande, Lagoa da Pedra, Lagoa do Coxo (Destacamos que
este minucioso levantamento se deve ao professor de geografia Moisés Calu da
Universidade Estadual de Alagoas).
Ao redor
delas um verdadeiro relicário da culinária alagoana e espaços de permanências
das culturas populares alagoanas.
[36]Trata-se de um crustáceo existente nas
regiões lacustres mangues, rios e mangues. De forte valor nutritivo, ele é um
dos frutos do mar que compõem a culinária alagoana.
[37] Ou seja: praticar a antropofagia a exemplo do
que fizeram os caetés com o português
branco e colonizador.
O
que está em jogo com este enunciado é não apenas apontar para elementos
atávicos e primitivos (tomar banho de
lagoa e comer caranguejo Uca com as mãos) na defesa de uma cultura
tipicamente alagoana, mas, sobretudo de apontar e firmar pontos de resistência afim de que possamos preservar uma espécie de
matriz alagoana no movimento
particular de nossas mestiçagens.
[38]
Quando o banho de mar ainda não havia se tornado uma prática glamurosa das
elites, a Bica da Pedra, o banho no Cardoso e o Catolé eram espaços lacustres e fluviais
conhecidos enquanto espaços de vivências, recreações e lazer.
[39]O Bar das Ostras foi um bar muito
conhecido e freqüentado em Maceió durante as décadas de 40, 50 e 60 do século
passado. Ele se tornou famoso em virtude de sua culinária à base dos frutos
oriundos das geografias culturais
alagoanas.
"Sururulândia[40]":
Esta é nossa riqueza e desde sempre memória.
Mas aconteceu
que Maceió fugiu da Mundaú.
Pensou que a lama e os caranguejos e os homens-caranguejos iam engolir ela[41]!!!!
A nossa aristocracia, com medo e nojo fugiu do barro, e fugiriam também
da zoadas dos batuques, dos cocos e das
macumbas e foram morar lá na banda das praias: Pajuçara, Ponta Verde e Jatiúca. E naquelas praias, há pouco
desertas, no lugar dos casebres e casas de paus a pique, foram montados os
edifícios e as luminárias elegantes da cidade.
Os antigos e primitivos moradores da praia da Pajuçara em suas casas de
palha (Fotos de Arquivo do Museu da Imagem do Som)
E as águas do mar são
diferentes das águas da lagoa.
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[40] Era essa uma das referências a Alagoas, quando nas primeiras décadas do século XX o sururu era amplamente consumido e compartilhado no imaginário alagoano.
[40] Era essa uma das referências a Alagoas, quando nas primeiras décadas do século XX o sururu era amplamente consumido e compartilhado no imaginário alagoano.
[41] Trata-se de assinalar aqui as mudanças ocorridas no
espaço urbano de Maceió em decorrência do processo de desenvolvimento da
modernidade, quando em conseqüência do avanço de novos espaços urbanos, as
elites alagoanas da capital passaram a ocupar a região das praias. De passagem
lembramos que a valorização das praias enquanto um espaço saudável e de lazer,
é uma construção tardia da modernidade. No começo do século as praias eram
lugares desertos e dentre outras coisas, utilizadas para depósito de lixo e
dejetos.
Assinala-se também aqui,
que um dos traços da modernidade alagoana - e fugiriam também da zoadas dos
batuques, do coco e das macumbas – foi a instalação de uma cultura urbana e de
elite apartada das geografias e dos movimentos das culturas populares.
A gente sururu então ficou sozinha.
Formou-se deste então duas gentes: a gente sururu e o povo rico da cana.
De um certo
modo, ao gosto do sururu, se somou o
cheiro da cana. Alagoas então é de todo um pouco de cada pedaço.
Mas, ao
contrário da maternidade dos mariscos, os capins da cana se tornaram baionetas retocadas de sangue.
Na verdade, a cana nunca foi doce.
Zumbi e os negros já desde sempre sabiam[42].
O sururu também não é doce. Mas entre o doce e o salgado, e somado às mestiçagens das cantigas e do
somatório das estórias todas, ele foi dando alma e corpo às gentes alagoanas[43].
Por isso, é uma pena que o
Farol não derrame sua luz na Mundaú.
O Farol nunca iluminou as lagoas. Nas lagoas não navegam os navios. Mas,
afinal o que trazem os navios? Nas
lagoas apenas navegam os peixes, os homens e os mariscos adormecidos e
preguiçosos: o bagre, o mandim, o siri, o caranguejo e o sururu enfiado na lama[44].
Mas, afinal, se toda festa tem um tempo, qual o tempo sururu?
Sururu,
cultura oral sururu. Sinestesias: pureza aberta e sem perigo. Sinestesias: um dia um branco tomou caldo de sururu e ficou doido. Sururu: comida dos pobres:
“Nossa
miséria é a nossa riqueza” [45].
Que
ressuscitemos todas as histórias
E que no banquete das mestiçagens periféricas
E que no banquete das mestiçagens periféricas
E na festa de
todos os povos ressurgentes
Morram
colonizadores e colonizados[46].
E que por dentre
o barro e cheiro da lama
E no somatório de todas as imagens, a Mundaú central,
E nela a gente sururu
seja imensa
Feito um oceano sem margens[47].
No somatório de todas as águas.
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[42] A referência nesse contexto é à escravidão, uma
relação social historicamente associada à exploração da cana-de-açúcar é
fundamental na solidificação de uma teia de poder associada a cultura da violência.
[43] O sururu está sendo colocado aqui
enquanto uma alegoria da mestiçagem alagoana.
[44] Mais uma vez aqui, uma referência crítica à modernidade
alagoana. Enquanto meio de transporte os navios foram os veículos do
desenvolvimento do colonialismo e consolidação da modernidade.
Neste
contexto, a referência à iluminação das lagoas, está apontando para um olhar
voltado para o interior de Alagoas, para as particularidades da flora, os
coqueiros, sobretudo, a fauna lacustre, o bagre, o mandim, o caranguejo, etc.
[45] Frase de Tavares Bastos.
[46] A morte de colonizados e colonizadores – pólos de um
mesmo núcleo, a colonização – é imprescindível para o nascimento de um olhar
descolonizado e voltado para um imaginário das coisas alagoanas.
[47] Um oceano sem margens. Frase extraída de
um poema do poeta Zé Paulo do município de Pão de Açúcar lá pelas bandas do alto
sertão de Alagoas, beira do São Francisco.